terça-feira, dezembro 23, 2008

Como nasce uma teoria



No alto da colina se escondia o Tempo, maior de todos os vilões das estórias de amor , de poder e de vitórias. No entanto, aqui conto que é deveras frágil e solitário.


Vivia recluso, em suas chinelas velhas, como se esperasse por algo que viesse a dar vida aos seus dias e sabor a seus jantares. Ninguém sabia por quanto tempo o Tempo viveria na mais completa solidão, assim como não sabiam desde que época enfiou-se naquela taverna de madeira escura, envelhecida, tal como o próprio habitante.


Os poucos que ousam contar sobre o ilustre ermitão, consideram-no em alta conta; se pouco contribuía para a baderna, também não poderia ser responsabilizado por qualquer comemoração, seja uma boda de aniversário ou reunião de alguma espécie. Se alguém lhe visita, com freqüência, é a sua única e fiel amiga, vestida de preto, mas não tão feia como se lhe pintam.


A Morte era a única a quem o Tempo falava. Geralmente ela vinha dizer-lhe algo, visto que sabia ser o amigo muito solitário. Vejam quão irônicas são as coisas da vida: se para os olhos gerais a Morte é vizinha do mau presságio e de terríveis agouros, para o Tempo faz-se companheira, pacata, ouvinte de melhor estirpe.


A Morte, todas as quintas-feiras ia ter com o Tempo. Diziam que nestes dias se ouviam gargalhadas tímidas por trás da pesado portão que costumava separar o morador do restante dos vizinhos que viviam naquela colina. Riam muito, sorviam algum tipo de vinho e – há quem diga – bailavam ao som de alguma música alegre, não sei agora se samba ou chorinho, fato é que se divertiam muito, mais ainda quando um estava na companhia do outro, a pisar um no pé do outro, a rir um sorriso sem dentes, mas nem por isso menos verdadeiro do que o sorriso nascido de bocas harmoniosamente preenchidas.


– Temo que separados não somos nada. Disse a Morte ao Tempo, oferecendo-lhe os olhos fundos de quem muito já viveu e presenciou nesta existência.


– Ora, deixe de tolices. Sabes bem que podemos ser bastante independentes. Não somos como os girassóis, extremamente carentes a espera de um mísero raio ensolarado para se fazer vigoroso. Podemos muitíssimo bem um viver sem o outro, sem apego ou algo que o valha, não estou entendendo o sentimentalismo desta tarde.


– Não é questão de sentimentalismo, tampouco de dependência. Veja, estou aqui, como estou todas as quintas-feiras, a beber este vinho, a sentar nesta cadeira e a fazer-te companhia, uma companhia que julgo-te necessária. Outro dia li de algum filósofo uma coisa que dizia sermos parentes próximos.

Ao escutar esta última frase, arregalou os pequenos e enrugados olhos o Tempo, como se escutasse um disparate ou algo que o valha.

- Parentes próximos? Se antes não entendia o sentimentalismo agora me surpreendo com o parentesco súbito. Acaso agora reclamas a mim paternidade? Fraternidade? Veja, não tenho vintém nem ouro. O que tenho é esta humilde taverna que nos serve de abrigo no momento. Tire-me isto e nada mais restará ao velho Tempo.

– Há dias em que pareces menino, sequer lembras a sabedoria a qual sempre achei ser parte de tua personalidade. O que quero dizer é que não somos tão diferentes assim. Claro, tens tua casa, eu tenho a minha, nem grande, nem pequena, apenas um lugar para eu pousar e descansar após tantas milhas que sempre percorro. Não reivindico herança alguma, tampouco paternidade, pois prefiro continuar a fazer parte do reino dos bastardos, estes, não tendo pai nem mãe, parecem viver a vida de uma maneira mais tranqüila, menos tediosa.
Digo-te que concordo com o que li, não sabendo a escola filosófica de que tirei, faço minha a teoria de que nós somos frutos da mesma espécie, tal como frutas parecidas, algo como pitanga e acerola. É isto! Somos feitos da mesma matéria e a mesma matéria nos reduziremos. “ Tempo e Morte não hão de andar separados jamais” , seria uma belo princípio de uma nova teoria. O que achas?


– Considero o raciocínio brilhante, o princípio factível e o filósofo um charlatão. Deve ter sido tua mesmo a idéia, e se não é, apressa-te e faz dela tua doutrina, tua causa maior, tua ideologia. Todos nós necessitamos de uma, a minha são os meus chinelos, sem eles nada sou. A tua? A tua poderia ser essa tal premissa de que andamos um junto ao outro. Eu continuo achando que se trata de sentimentalismo ou questão de dependência. Estás muito sozinha?


– Sozinha? Nunca! Sempre alguém vem me fazer companhia, por cansaço, apatia, irresponsabilidade ou mesmo por mando teu. Definitivamente não estou só, muitos me visitam e não vá pensando que só tenho a ti. O que digo e que de bom grado fundo como teoria é a solidariedade, vamos dizer assim, presente em nossa amizade , isto é algo indiscutível. Nós andamos juntos: se eu tenho o penoso ofício de intimar velhos, jovens e crianças para comparecer ao tribunal do juízo final, tu és o ser que está por trás do último mandado.


– Agora me culpas? Não entendo mais nada e acho bom suspender o vinho. Agora me culpas de contribuir para o exercício de sua terrível profissão? Ora, eu aqui nada faço, acompanho as estações se sucederem, os anos passarem. No máximo coordeno a dança dos ponteiros dos relógios. Se tu matas, eu nada tenho a ver com isso, apenas cumpro minha função de refletir, de contemplar todas as coisas belas da natureza, sejam elas estrelas, plantas ou lua, o que faço é apenas dar prosseguimento a ordem natural da minha superior, a Vida.


– Mas veja se o meu companheiro não está tirando o pesado corpo fora! És meu cúmplice, como o serás ainda daqui a muitas primaveras. Se eu completo a obra, tu me emprestas os pincéis; se eu posso assinar como artista da obra acabada, tu é quem me dás tinta e papel para que tudo seja feito.


Ao ouvir estas palavras serem proferidas em tom de acusação , o Tempo não se deixou desequilibrar, ajeitou-se na poltrona marrom e continuou a argumentar com a mesma voz plácida que lhe caracteriza.


– As coisas, por mais belas que sejam, findam e findam por que tudo nesta existência insiste em passar, a mudar, esteja eu falando de estações, de luas ou marés. Não sou eu o culpado. É assim e porque é assim não sei dizer. Da mesma forma que não sei explicar a mudança das marés, o cantar dos pássaros e as fases da lua, também não sei dizer sobre a existência, o que sei é que ela tende a findar, porque não há flor que viva para sempre, porque não há ainda elixir da juventude.


A conversa parecia interminável, estando a Morte certa da infalibilidade de sua teoria, não aceitava os argumentos do Tempo especialmente por entender que este teimava por mania e gosto.


– Tu agora achas conveniente afastar-te de mim e deixar-me toda a cruz para eu carregar sozinha. Interessante se faz culpar-me das mazelas do mundo, culpar-me da miséria, da tristeza e da dor humana, mas assumir tua cota de comprometimento com a finitude da vida, disto tu te retiras. Não é nada sábio da tua parte não conseguir enxergar a parceria que fazemos, a tua parcela de empenho em me legitimar o ofício que, mesmo penoso, me dá o sustento e do qual muito me sinto honrada.


O Tempo, em sua tranqüilidade quase católica, fez que não ouviu as últimas palavras proferidas pela companheira, levantou-se, foi até a cozinha a fim de procurar um paninho de prato; o móvel de madeira de lei estava sujo de uma substância violácea, a mesma que era sorvida pela Morte em goles pequenos mas constantes.


– Teu mal se chama alcoolismo e minha virtude altruísmo. Deixo-te ficar esta noite porque nem bem caminhar tu podes mais, agora encerra essa conversa de cumplicidade e parceria já que eu não consigo ver outra causa para o surgimento desta teoria do que a causa etílica. Bebeste muito, estás a dizer asneiras e eu não sou obrigado a ouvir nada disso em minha casa. No entanto, sou conhecido – como bem sabes – pela nobreza do coração e pela tranqüilidade – já que o fígado não mais me permite esses excessos, cuido de ti por não outra coisa do que amizade. Qual lençol tu preferes?

A isto a Morte respondeu com indignação, uma indignação somente vista em gênios incompreendidos que vivem a espera do reconhecimento por parte do restante da população que julgam sempre como ignorante ou acéfala.

– Se és conhecido pela tranqüilidade e nobreza, digo agora que passas a ser conhecido pela ignorância. És tolo, ingênuo, no mínimo. Aqui surge uma nova teoria, um raio, um lampejo de sabedoria, algo certamente grande que será estudado através dos tempos, metrificado, quantificado. Prevejo teses, monografias, dissertações...toda uma sorte de documentos escritos com a pena do cientificismo e com a garantia do Positivismo. Serei grande, maior do que já sou, e os louros da vitória...ah! Estes serão colhidos apenas por mim!


– Retiro o que disse. Teu mal não é apenas o alcoolismo, é a impáfia, a soberba, embebidas no álcool, claro. Agora queres dominar o mundo, e, não estando satisfeita, queres a Ciência, os mestrados e os doutorados? Ego é o que não te falta, mas louvo-te a auto-estima, quisera eu ser tão seguro de mim...sinto-me gasto, velho, amarelado e mofado como uma carta de amor que viaja entre os séculos a procura de um coração disponível.


– Se deitares teus olhos nos compêndios científicos, se ao menos simpatizasse com a Filosofia, saberias do que se trata: Tempo e Morte sempre haverão de trabalhar em parceria. Se tu te esforças no esboço eu determino o acabamento do conjunto, jogo-lhe umas tintas, faço a assinatura final, porém, não esqueço que a obra é elaborada por quatro mãos.


– Morte, estás ébria e aos ébrios não se deve dar ouvidos, no máximo, uma xícara de café e um banho frio. Recobra-te os valores e também a consciência. Eu posso viver sem ti, não sou nenhuma espécie de coadjuvante nas tuas desventuras; vivo minha vida sem precisar de ti, em dias que tu não estás comigo ocupo-me das hortaliças e dos remendos na cerca que sempre parecem se multiplicar.
Tenho mãos fortes e talento para jardineiro. Também sei cozinhar e bordar. Para que te necessito? Somente para lembrar a boca e a língua o antigo ofício de falar, pois, não tendo companhia que se apresente, vai tu mesmo, que me és fiel mesmo sendo esnobe.


– Não precisas de mim? É isto que estás a dizer? Ah!Mas quão novo é este discurso!Não eras tu mesmo que, há alguns anos, dizia-te grato pela “constante companhia e fidelidade absoluta”? Agora preferes abobrinhas e tomates a mim? Sinceramente, se meu mal é a impáfia, padeces de moléstia grave chamada ingratidão.


Considerando a última palavra muito forte, o Tempo sentou-se como se a espera de recobrar a consciência e a tranqüilidade quase sempre inabalável. Ingrato é o que não era, era justo e bom , ao menos se considerava. Fez-se magoado com a companheira que tomava seu vinho, deitava em seu sofá e lhe tomava preciosos minutos.


– Decididamente coisa que não tens é coração. Eu te dou abrigo, vinho e boa comida. Dou-te conversa que, mesmo que não tão animada – porque é de meu caráter essa mania de ser metido em mim mesmo – ainda assim é uma conversa...Não tens coração. Ingrato é o que não sou, podes perguntar a essa gente toda se me viram não pagar com um sorriso qualquer benefício que já me tenham feito.


– Ingrato. Ingrato. Mil vezes ingrato. E covarde. Assuma a participação no destino humano. Assuma a co-autoria dos crimes que cometo dia após dia com perfeição invejável. Jamais me vistes falhar, posso tardar, mas chego, fecho os olhos cansados de quem irá apenas abri-lo em ambiente eterno. Nós chegamos sem pedir licença porém, com elegância habitual, roubamos a vida de um ao passo que também abreviamos a dor alheia.


– Co-autor? Nada tenho a ver com teu ofício horrendo! Tira-me esta culpa dos ombros que estes já vão cansados.


– Ora, veja, não há somente ossos em meu ofício, ou devo dizer nosso ofício? Há sempre os dias de alegria e estes são aqueles em que venho em socorro de corpos tão cansados de padecer. Venho dar a extrema-unção àqueles que nem mais forças teriam para dar um suspiro derradeiro. Meu querido, como em todo santo ofício, há os dias de regozijo, de glória.


– Se não me responsabilizo pela abreviatura que fazes a vidas serenas, tampouco me orgulho do prazer último que dás às existências cansadas de padecer. Não quero participação, também não desejo colher os louros do teu ofício. Deixa eu com minhas ervas e meus temperos que isto é coisa muito bonita da qual pouco entendes.


– Deixo-te. De uma vez por todas. Acredito que minha teoria é complexa demais para mentes ignóbeis como a tua. Fica tu com teus tomates e alfaces que de ciência nada entendes. Um dia serei grande, dominarei as gentes de todos os planetas – posto que uma galáxia é pouco para minha capacidade – e aí ouvirás falar de mim. Só não me peças participação nos lucros dos livros que irei lançar. Não sairás na capa, tampouco te chamarei para assinar um prólogo. Não és digno, és ingênuo, de uma ingenuidade burra e de burrice eu nada entendo.


Dizendo estas palavras em voz alta, mais alta do que a de costume, a Morte aceitou o caminho da rua que lhe era oferecido a dedo rijo pelo outro, ajeitou o traje negro e pôs-se a caminhar alegre com a possibilidade de fama e fortuna iminentes. Seria grande, teria o destino de um Napoleão sem ter que passar por Waterloo. Idéias grandes são idéias incompreendidas por pessoas de natureza rasa, pensou consigo mesma.


Quanto ao Tempo, deixou-se deitar no antigo sofá que decorava a sua velha morada, ficou a pensar na vida e na sua antagonista, chamou-lhe em silêncio de vários nomes além de ingrata, jurou não querê-la ver mais e acabar com os bailes das quintas-feiras. Pensou que não precisava de muito a não ser de memória, esta que trazia intacta, poderia se lembrar de qualquer evento que tenha acontecido antes ou depois de Cristo.
Dali em diante ficou só a meditar, a refletir sobre as ciências astrológicas, sobre o fenômeno das marés mas nada queria saber de doutrinas filosóficas. Quando a solidão o deprimia tratava de ouvir suas músicas alegres, não sentia falta da fortuna e da fama, porém, toda manhã tomava café lendo jornais, que era para ter notícias da antiga amiga.

Um comentário:

JRM disse...

Vai sair em qual livro??