Em tempos de culto ao espetáculo, alguns eventos tornam-se mais ou menos interessantes a medida em que a sociedade os reorganiza, os re-significa e os faz parecer outra coisa nesta contemporaneidade da qual todos nós somos vítimas e algozes.
Desde a última quinta-feira os jornais e programas televisivos começaram a explorar a figura de Gabriel
Garcia Marquez, para os íntimos, Gabo.
Gabo (me faço de íntima por economia
mesmo) andava um tanto quanto recluso devido a seus problemas de saúde, os
quais não eram segredo para seu ninguém, só que, quando morre um imortal,
quando morre um Nobel, devem ser rendidas homenagens colossais, assim foi com
Saramago, assim foi com tantos outros que certamente criaram um mundo melhor, mesmo que apenas na Literatura.
Não
sou contra as homenagens, mesmo que excessivas - o funeral durou muito tempo
até ser realizada a cerimônia de cremação. Não questiono aqui a importância do
defunto, nem a necessidade quase infantil - e culpada - de prestarmos todas as
reverências a alguém da estirpe de Gabo.
Na verdade, por ser quem ele é, por
todos os livros que escreveu e os quais poucos eu li, confesso, eu não acho enfadonho
assistir as homenagens fúnebres e nem as edições jornalísticas que tentam
resumir sua importância em alguns minutos preciosos que cabem num telejornal.
Eu sempre penso nisso: nos editores, naqueles trabalhadores que têm por ofício
realizar em suas ilha de edição, um breve resumo mais ou menos fiel à
importância do defunto, deve caber toda a obra de quem morre naqueles meros
dois minutos de exibição.
Nesses preciosos minutos sobre Gabo,
há de se ouvir os nomes "Cem anos de solidão" e "Crônica de uma
morte anunciada", acho que caberia também "Memórias de minhas putas
tristes", este último nunca mencionado nos jornais e programas, o que me faz questionar o motivo do 'esquecimento" de uma obra tão importante, apesar de
mais recente, do defunto célebre que ainda nem esfriou.
Divagações à parte, uma coisa me chamou
atenção nesse momento de comoção pela morte do escritor: hoje assisti a um
programa em que se falava da possível publicação de um livro que o autor não pensou em publicar. Consta que o seu editor pediu autorização à
família de Gabo para publicar o que viria a ser sua "obra
póstuma".
Intitulado "Em agosto nos vemos",
sabe-se pouco sobre ele, mas o que se sabe é que em 1999, Gabo submetera
seu primeiro capítulo à audição pública. Somente o primeiro capítulo.Depois disso lhe coube o quase mais absoluto esquecimento.
De 1999 para cá, muita coisa foi publicada,
inclusive “Memórias de minhas putas tristes” (2004) que foi um estrondoso sucesso de
crítica e público, o que contribuiu para o eterno adiamento da obra que se quer póstuma
agora.
Qual seria o motivo, a razão pela qual “Em
agosto nos vemos” fosse relegado ao esquecimento, ao fundo de uma gaveta
qualquer? Segundo foi relatado pelo mesmo jornalista, talvez um dos motivos
para o esquecimento do livro tenha sido o fato de que Gabo nunca ficou satisfeito
com o ponto final que lhe cabia.
Apenas encerrar o livro, isto ele não conseguia.
Consta que foram seis, seis finais diferentes que Gabriel Garcia Marquez tentou
fazer funcionar em seu livro, mas que, ao que parece, não cumpriram o papel de
agradar o afamado escritor. O que aconteceu? Por que Gabo enganchado
nesse tal livro?
Talvez nunca saibamos estas respostas, mas
o que sabemos, neste momento, é que há um interesse do editor publicá-lo, e
agora que se deu a morte do criador, a criatura surgiria literalmente das
cinzas e se tornaria a obra póstuma a ser celebrada e honrada com todas as
honras e méritos que cabem a tudo que é póstumo.
Essa notícia evoluiu para uma interessante crítica em que se falou muito sobre
ética e sobre o desejo do escritor. Por essas surpresas que o destino nos
prega, acontece comigo acabar lendo algo relacionado com o que lera
anteriormente (mesmo dia) ou mesmo relacionar uma leitura da noite à algo visto
em jornal ou televisão mais cedo, por que acontece?
Eu sempre acho que é a mão do destino que
me faz à noite ler algo que corrobora ou se relaciona perfeitamente com o que
eu experimento ao longo do dia. Não sei dizer, mas sempre tendo para
explicações ocultistas. Não sei nem mesmo se há relação possível nesse momento,
mas faço-a, na cara dura.
Não
sabendo se existe relação plausível entre o comentário que vi à
tarde e o que direi a seguir, eu insistirei, mas o caso é que para mim parece haver uma
relação, ou pelo menos, se não há eu a forcei.
O que relaciono - a pulso ou naturalmente
- é essa questão do "livro póstumo" de Gabriel Garcia-Marquez a
alguns pontos da filosofia Merleau-pontyana. Na verdade, o que me interessa em
Merleau-Ponty é seu apreço pela arte e por esta ser um campo privilegiado em
sua ontologia.
A fenomenologia de Merleau-Ponty vem na esteira do pensamento de Husserl e trata do
resgate do Ser, fala também do interesse pelo Espírito Selvagem e outros bichos, mas o que
me fez relacionar "Em agosto nos vemos" a sua filosofia é na
verdade sua forma de conceber a arte como a própria experiência, como um
meio através do qual é possível realizar uma torção na linguagem, fazer
aparecer o inédito a partir do que está estabelecido. Todo meu argumento será
centrado nisto. E há tanto de lacaniano nisto, embora o autor seja um fenomenólogo...
Marilena Chauí em recente artigo publicado
na Revista Cult sobre o filósofo nos apresenta alguns conceitos da filosofia e
da ontologia merleau-pontyanas, e diante do que expõe a autora, o que me chama
atenção é a possibilidade de ver Psicanálise em um fenomenólogo - isso eu não
acho forçado, também não sei se são os óculos que uso, quem sabe?
Especialmente quando se trata de entender
que o artista, o escritor, o pensador realiza uma torção na linguagem ao
promovê-la ao mais além, ao levá-la a um lugar nunca antes habitado, este lugar
seria a própria experiência que não se encerra em um momento, a experiência -
bem dizer - nunca se esgota, e, consequentemente, o que foi dito, nunca será
terminado, porque, ao ser torcido e retorcido no exercício mesmo da feitura de
uma obra, já se cria outra coisa, já se cria um excesso e ao mesmo tempo uma
falta, excesso e falta estes que inevitavelmente levarão outros artistas,
outros escritores, outros pensadores a novamente torcer, retorcer e criar algo,
outra coisa, essa coisa é a experiência.
Nesse rumo em que já estamos, fica difícil
não pensar que a questão polêmica entre publicar ou não o último livro inédito
ultrapassa os limites da ética, pois nos apresenta outras interrogações, o que,
para Merleau-Ponty, é um bom sinal, então, tendo o seu aval, sigamos.
Para o fenomenólogo em questão, só há obra
se há algo a dizer, nesse sentido, o excesso e a falta são inerentes a toda
obra e a esta cabe sempre o espanto, é esta, inclusive, a atitude que devemos
ter em relação ao mundo.
Então aqui eu chego ao ponto que desejo: como
seria escolhido um dos seis finais para o livro? Será que ficou algo escrito,
será que restou um último desejo de Gabo no que concerne à preferência de um final
em detrimento dos outros? Como o editor saberia? Como a família saberia?
Eu fiquei pensando em tudo isso e no
momento em que fazia minhas as interrogações que devem ser de muitas pessoas
que também assistiram ao programa hoje à tarde, eu pensava em Merleau-Ponty e
na sua forma de conceber a linguagem como prenhe de sentidos, como tudo aquilo
que escapa às significações.
Pensei também que dar um final a um livro
que nem o autor cogitou seriamente publicar soaria como um desrespeito a essa
mesma linguagem, misteriosa por excelência, experiência por vocação.
Dar um final e mais, publicar "Em
agosto nos vemos", me soa mais grave do que um problema ético, por mais
implicações que existam em um problema de cunho ético. Para mim, e agora eu forço,
seria o mesmo que cometer um crime.
Publicar e dar a este livro que já se sabe
problemático um estatuto de obra póstuma me parece um problema muito grande, a
começar pelo fato de que temos uma mania interessante de situar os autores, os
pensadores e o que eles pensam em um dado momento cronológico, assim temos
"o jovem Marx", "o velho Marx", e outro dia ouvi de alguém
que já se fala em um "ultimíssimo Lacan".
Tenho medo que Gabo
vire o "último Gabo” “ O Gabo de Em agosto nos vemos", pois me parece
óbvio que este livro seria fruto do oportunismo editorial que adora esses
momentos de comoção para lançar algo "inédito", o "nunca visto" do
autor a quem são rendidas todas as homenagens. Acho até perigoso. Seria um
livro de Gabriel Garcia-Marquez ou do seu editor?
Nesse exato momento penso em uma coisa: será mesmo que o melhor que se pode acontecer a um livro é ser publicado? Tenho medo do que esta reflexão pode fazer surgir. Mas vamos lá.
Tudo isto é perigoso porque, no sentido
merleau-pontyano, toda obra tem algo a faltar, tem um excesso que quase incita
as outras pessoas a retomarem o edifício construído e acrescentarem novas
pedras, para uma nova obra surgir.
Sendo assim, escolher um final seria proibir
qualquer outro dos cinco finais de existirem, de co-habitarem o mesmo espaço,
na folha de papel que, se foi escrita, não saiu a rua, não se expôs aos olhos
públicos.
Serei enfátic: Caso esse livro seja publicado, eu serei a
eterna viúva dos outros finais, estarei, ao ler, sempre pensando nos outros
cinco que por alguma razão não foram publicáveis, foram com Gabo para a última
morada.
A publicação do livro que se quer póstumo
se torna não apenas um desrespeito à vontade do autor, mas também um problema
fenomenológico ao romper com a concepção de que toda obra é inacabada porque
vem alguém e a significa.
Claro que se pode pensar que não será a
publicação da obra que a tornará acabada, afinal, se assim fosse nunca deveriam
ter publicado nenhum livro, uma vez que o ponto final seria sua morte.
E não
é isto, absolutamente, não penso que o ponto final retira do livro seu
potencial criador, ao contrário, o ponto final muitas vezes é o motor para que
pensemos em tantas coisas, para que criemos algo, o ponto final, é,
merleau-pontyanamente falando, o ponto de chegada onde vazio e excesso se
encontram, esborram e nos fazem criar.
O que me faz pensar além do problema do
ponto final e na eleição de apenas um final, é justamente o fato que ler um livro assim seria um crime, e aqui novamente recorro à Merleau-Ponty. Segundo o autor, quando leio
um livro eu não penso como o autor, eu sou dentro do autor, eu sou o autor, eu
vivo a experiência.
Esse problema é muito mais interessante
aqui do que o ponto final e é ele que me causa a maior dor de cabeça. Meu medo
é justamente este, este medo de estar cometendo um crime, de fazer algo que de
certo Gabo não aprovaria.
Ora, se a literatura e a arte em geral possuem esse
estatuto privilegiado de chegar perto do Ser, e se o escritor e leitor se
fundem num só a viver a experiência da leitura, eu penso que essa experiência
eu viveria sozinha, sem Gabo.
Eu só penso que a experiência de ler
"Em agosto nos vemos" seria algo meio proibido, algo assim para ser
feito escondido, eu penso que lê-lo e finalmente descobrir o tal ponto final
não seria algo que Gabo permitisse.
Ao ler o que se quer
por "obra póstuma" eu estaria rompendo essa relação quase cúmplice
entre leitor e escritor, eu penso, na verdade, que Gabo acharia uma ousadia, e
assim, eu não pensaria dentro dele, eu seria apenas aquele que sorrateiramente
pegou umas páginas escritas por alguém que não desejaria que eu as lesse e
sempre estaria fazendo algo errado, algo criminoso.
Assim, estaria rompendo com a
própria experiência. Seria como um rato que meticuloso e sorrateiro invade a
casa alheia, e isso não evitaria que em toda página que eu virasse eu pudesse
ouvir o vozeirão do defunto a me interpelar: "O que você está fazendo?"
Merleau-Ponty certa vez descreveu um livro
como "uma máquina infernal de produzir significações". Eu não vejo
melhor definição para um objeto, apesar da filosofia em questão desprezar
qualquer tipo de representação ou conceituação. Mas, vamos fazer um
esforço.
Talvez eu esteja sendo dramática ou até
mesmo pessimista, talvez a falta que certamente existiria no “livro póstumo” é
o que o tornaria célebre, é o que o tornaria prenhe de significados, cheios de
lacunas a preencher, talvez ele me lance a uma nova experiência, talvez ele, o
último, não venha com o peso do livro póstumo, talvez venha como uma
interessante descoberta, mas jamais virá com a cumplicidade terna que só observamos no verdadeiro encontro entre autor e leitor...
Não importa, eu não vejo o "livro
póstumo" que ainda nem existe como uma máquina infernal de produzir
significações, porque sempre me parecerá romper com a cumplicidade harmoniosa
entre aquele que faz surgir do silêncio as palavras e aquele que as lê já
colocando uma ou outra palavra sua em cada página.
O livro não será nem o último, nem o
primeiro Gabo, porque, como nos ensina a boa filosofia, o autor é tudo isso ao
mesmo tempo: passado, presente e futuro e não será o nome “póstumo” que me fará
vê-lo como uma consequência cronológica da obra de Gabriel Garcia Marquez.
Por esses motivos citados, eu recuso ao livro póstumo e reafirmo aue se há
um Gabo ao qual recorro é o Gabo que é pura experiência, pura magia dos
sentidos, puro viver, eu sinto e vejo o colorido e o sol de "Memórias de
minhas putas tristes", com a cumplicidade carinhosa do autor que insistentemente
toca meu ombro a cada página que eu viro.
Este sim, me é permitido, este é uma
máquina infernal, este me abre o mundo, lhe dá forma, cor e sabor, mas,
esperem, isto é Fenomenologia!
3 comentários:
Muito bom o texto. Meus parabéns : )
Oi, Mírian. Que bom que você retomou seu blog! ABÇ. Flávio
Obrigada pela visita, Talles e Flávio, é muito bom estar de volta!
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