domingo, abril 05, 2009

O artista é o bode expiatório?



" Se a perda da individualidade é de qualquer modo imposta ao homem moderno, o artista oferece uma vingança e a ocasião de se encontrar. Ao mesmo tempo em que ele se dissolve no mundo, em que ele se funde no coletivo, o artista perde sua singularidade, seu poder expressivo. ele se contenta em propor aos outros de serem eles mesmo e de atingirem o singular estado de arte sem arte"


Lygia Clark


É, é bem verdade, o mesmo que Lygia disse acima já foi dito por Foucault, já foi dito por Lacan, já foi dito até por Freud, se aqui pudermos dar um toque generalizador e não nos apegarmos à total sincronia das palavras. Tudo isto foi dito antes por outras pessoas que não Lygia, sendo que de outra forma, com outras palavras, mas o que nos interessa aqui é o sentido geral: O artista é o bode expiatório, isso, com essas palavras, quem diz sou eu.


Se não quisermos navegar por mares longínquos e nem desejamos ir muito além do Atlântico, podemos notar o caráter de susto que toda arte visa evocar. Isso também já disseram, mas digo também: Nos assustamos com um quadro, com a perfeição das formas ali esboçadas, nos assustamos com um filme, nos assustamos, indiscutivelmente, com um poema. E de onde vem este susto? Por quê me assusto?

De acordo com Sueli Rolnik e tantos outros teóricos da Esquizoanálise, todos nós possuimos um corpo vibrátil, feixe de possibilidades por si só, e possibilidades estas sempre indefinidas. Alguém também já disse isso, mesmo sem ser do metiê da esquizoanálise. Freud já o disse, em suas próprias linhas.


Nos assustamos porque possuimos um corpo que vibra, que pulsa a todo momento. No pulsar das nossas vísceras habita o corpo-bicho do qual Sueli tanto fala, e esse corpo-bicho, semi-desperto, semi-adormecido é que vai ser convocado a aparecer quando estamos maravilhados com uma obra de arte, seja esta qualquer arte, generalizo aqui.


Nos assustamos porque a arte, vez em quando nos relembra que possuimos um corpo que reage e age , que vive ali, aonde tantas vezes duvidamos que viva, um corpo que dá sinal , para muitos, somente quando adoece. Alguém também já disse isso, aposto que foi o pessoal da Psicossomática.


Uma coisa aqui que não sei se já disseram é essa coisa de artista e bode expiatório. Acredito que se se tratasse aqui de um texto científico, artigo, resenha ou coisa que o valha, eu estaria imensamente disposta a traçar uma espécie de paralelo entre a figura do bode expiatório e a do artista. Motivos tenho de sobra, eis alguns.


1) O primeiro deles é que todo artista se expõe, da forma que pode e sabe, na concepção de sua obra. Ou seja, é um corpo vibrátil falando, por vezes febril, por vezes em transe, que concebe, que golpeia uma tela, por exemplo, com suas pinceladas. Tudo isso lembra movimento, corpo, pulsar. Ali está, numa tela cheia, o corpo vibrátil do artista, que se entrega, numa mistura de narcisismo com sublimação aos olhos alheios, à crítica alheia.

Presumo mesmo que o momento em que uma tela é cheia e maculada pelas mais variadas tintas, esvazia-se o criador, agora é o vazio, a calmaria, depois do torpor.


2) Todo esse esvaziamento parece dar margem ao preenchimento de outro alguém, que certamente vai lucrar algo com o vazio do artista. O que seria esse lucro? De que moeda estamos falando? Estamos falando de angústia? Eu apostaria, mas se não quiser usar este termo eu poderia falar de desassossego. Desassossego, vá lá, este termo é-nos útil uma vez que nos faz lembrar de tudo que irrompe com força após a calmaria. Desassogo e desencontro, ou , se quisermos ir mais longe, encontro com o desespero, com o Real (lacanianamente falando) ou simplesmente, encontro com a efemeridade e com a incompletude. O artista , ao se esvaziar, propõe e dá início ao ciclo de esvaziamento e preenchimento, entre o fluxo de vibrações, podemos aqui tentar inovar , entre artista/espectador.


Ora, esses são apenas alguns dos motivos. Como disse anteriormente Lygia, como já o disse também Foucault, fico com a idéia de que alguém tem que perder, tem que lançar-se a esse coletivo, tem que se esvaziar para que o ciclo do desassossego dê início. Eu, artista, esvaziado de mim, ofereço a outrem o que me faz no momento, vibrar, ofereço isto em forma de tela, de filme, de escultura, de o que quer que seja, ofereço o que em mim já não se encontra, para se encontrar em outro, que , certamente se assustará com o que viu/sentiu/tocou/vibrou.

Ao chegar a estas conclusões, já não sei mais se me apiedo do artista ou se o louvo; sem ele talvez não conhecêssemos metade do que somos, talvez nem nos reconhecêssemos. O artista, alguém já disse, é um fingidor. Finge a dor? Ou sente-a até seus próprios limites, visando um pouco de compaixão daquele que a contempla?


Triste fim. Eis que já nem sei responder as questões as quais não param de brotar. Talvez não me contentasse com respostas prontas ou baseadas em qualquer teoria. Talvez, mas o que importa e aonde quero chegar é exatamente no ponto de partida, no ponto de interrogação. E porquê? Por que a interrogação que franze meu cenho e que me revira os olhos, me faz pensar e repensar, "matutar" é a mesma que produz o desassossego, é a mesma que vai me fazer buscar, incessamentemente, uma resposta que há - e queiramos nós que assim sempre seja - de ser sempre desconhecida.


Solução? Não há, se houver direi que é temporária, porque uma vez mais o corpo-bicho há de se reerguer, grunhir, pedir comida e nos deixar assim, sem eira nem beira, em busca de algo que nem sabemos o que é. Aí, então, nos resta é sublimar - na melhor das hipóteses, sabemos que existem tantas outras menos louváveis.


Aí, então, nos resta deixar o corpo pulsar, o bicho despertar ao perceber que eu não sou o único a mais indagar. E não é que aquela obra mexeu comigo?E não é que é bem assim que sinto ? É , por essas e outras, continuo defendendo o árduo papel do artista como bode expiatório, como primeiro corpo a dar voz e vez ao sentir o desassossego, esse que é tão coletivo, que habita em todos nós mas que quase nunca sabemos descrever.


E viva a arte, glória ao artista!

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